PARTE DOIS
“A única maneira de descobrir os limites do possível está em aventurar-se um pouquinho pelo impossível.” Athur C. Clarcke
Maria seguiu bem cedo para casa em Goiânia, como disse a Alex na noite anterior. Durante todo o caminho lembrou da ida ao cinema e especulou consigo quais seriam as intenções do jovem rapaz. Nada conclusivo, tão somente as mesmas verdades de sempre: Alex é tímido, inseguro, imaturo.
Já em casa, cansada daquelas preocupações, ligou para seu compadre e avisou que já aguardava seu afilhado, cumprindo assim promessa feita de passar o domingo com a criança.
Em seu quarto, Maria retirou o pequeno espelho da parede e o colocou sobre a cama apoiando-o em uma almofada. Distanciou o que pôde para que a imagem formada fosse pequena e pudesse assim ver todo seu corpo. Não conseguiu. Então segurou o espelho com mãos enquanto o manipulava buscando ver em partes todo seu corpo. Viu seu rosto moreno de bochechas arredondadas e nariz levemente achatado, um cabelo castanho escuro liso na raiz, mas que se tornava ondulado a dois dedos de comprimento e chegava aos ombros em cachos bem definidos, ombros e quadril alinhados num perfil de peso mediano, nem magro, nem gordo cujas pernas e braços davam o equilíbrio a imagem de moça comum.
Sou suspeito ao afirmar que ela era bela. Posso assegurar que um homem concordaria com minha descrição de “moça comum” acentuando apenas o nariz levemente achatado e rosto arredondado, traços afros num rosto moreno, que não era tão claro que pudesse se tornar amarelado, nem tão escuro que pudesse se tornar arroxeado. Era um moreno gostoso daquele que dá vontade de mordiscar, é, sou mesmo muito suspeito para descrevê-la.
* * *
ALEXbotaotexto
Das trevas à luz amena vindo da janela. Podia notar pela tonalidade do céu que era o final do dia. Léo acordou em seu quarto. A cama tinha o lençol arrumado, amassado apenas no local em que deitava, estava sozinho. Seu braço estava estendido e sua mão caída para fora da cama segurando entre os dedos levemente abertos uma antiga moeda. Observando-a por alguns segundos, e notado a posição de seu braço não precisou pensar muito. Lançou-a ao chão e em alguns segundos ouvi passos que se aproximavam como as lembranças do que aconteceu com o amigo. A melancolia parecia se aproximar. Entrou no quarto um senhor aparentado d’uns setenta anos:
— Então acordou. — disse o velho de pé à porta — Está bem?
— Como eu poderia estar bem? — disse Léo lamentando.
— Você é jovem e forte, tem toda uma vida pela frente. Por que não estaria bem?
— Ele morreu…
— Você me lembra quando eu era jovem, está ilusão sobre a vida, estas ideias… — o senhor é interrompido em meio a sua filosofia.
— Não quero ouvir isto agora, desculpe-me, estou mal demais para ficar falando sobre a vida, ou sobre a morte.
— Mal? Você está ótimo.
— Não! Eu estou horrível, não vê?
— Eu estou horrível — arremedou — Você até que está bem ajeitado. Não é a maravilha que eu fui um dia, talvez não chegue a viver tanto quanto eu. Sabe tenho oitenta anos, e mantive esta carinha de setenta. — disse o senhor com largo sorriso enquanto caminhava aproximando-se mais. — Tenho um pedido. Você já deve ter ouvido sobre mim, sou o Tiburtino, nosso amigo me chama de Tio. Simpático ele, não?
— Você é o tio de Alex.
— Não, eu sou o Tio. Não sou tio dele, há empecilhos para isto. O que quero pedir a você é que cuide dele.
— Alex morreu.
— Alex… Fico pensando porque ele escolheu este nome… Não rapaz, ele não morreu… Ele não morre, vou chamá-lo para que lhe explique, depois continuamos nossa conversa.
O senhor chamou por Francisco e logo o jovem Alex adentrou o quarto. Léo sentiu alegria intensa, proporcional a confusão mental. E apertando os olhos pensava: “Por que comigo? Onde me enfiei?”
— Você está naquilo que chamam destino, eu e você, não tenha medo meu amigo. Posso não ser igual a você ou a qualquer outro que já tenha visto, mas não sou perigoso. Amo-o tenha certeza disto. És meu amigo, o segundo em todo século vinte. — Alex sentou na cama, Léo pegou no seu rosto levemente depois apertou sua mão — Queria eu não precisar mentir, chegar e contar algumas de minhas verdades. Tive medo, se eu tivesse feito isto talvez não o teria como amigo.
O velho se levantou e saiu, Alex continuou:
— Não mentia quando disse que não me lembro quando nasci, que não conheci meus pais, e que passei os últimos dez anos junto ao Tio. Fato, eu não sei quando nasci, tenho certeza apenas que não foi, neste ou no século passado. Acho até que vivi sempre. Não que’eu me lembre de tudo, tenho uma memória boa para os últimos cinquenta anos, razoável para os últimos cem. Já o anterior a isto não difere das lembranças que vocês dizem ter dos seus pesadelos e sonhos da infância. Já vi muitos homens descrever seus sonhos e devaneios, e digo que minhas memórias não vão além disto. Darei a resposta da pergunta que o Tio me fez quando nos encontramos há cinquenta anos: lembro de caminhar por campinas verdes, ser alimentado por centenas de homens diferentes, lembro-me de ser carregado como ídolo por tantas paisagens que mesmo que as descrevesse rapidamente faltaria vida a você para ouvir um terço delas. Lembro-me em cela, lembro-me em navios, lembro-me aqui as praias deste país. Vi o século iniciar, ouvi falar de guerras, uma guerra, depois outra, lembro de um grande cogumelo que vi na capa de um jornal. A bomba! — disseram. Deste dia até hoje lembro de todos os presidentes, de todos os conflitos, de todos que cruzaram comigo. Um dia não me lembrarei com muita clareza da bomba, mas lembrarei dos seus olhos que vejo cinquenta anos depois.
— Não acredito. — disse Leonardo secamente.
— Posso esclarecer algo? Já que não posso convencê-lo a acreditar.
— Pode parecer estranho o fato de você ter passado toda noite dentro d'água, morrer, e depois vê-lo falando sobre sua imortalidade. Porém, mais estranho ainda, é como seu tio vem aí, e seus argumentos… Por que devo acreditar? Isto tudo pode ser um delírio seu. Você e seu tio, o Tio, podem ter armado tudo.
— Não armei, desculpe se lhe apliquei um sedativo, consegue lembrar? Eu não sabia como agir. Tive medo de que me visse como um monstro, precisei de ajuda. Eu não tinha certeza se podia viver sozinho, e hoje vendo você; tendo conhecido a Maria e todos seus amigos… Eu sei que não posso. Sei que um dia vocês irão morrer e eu vou ficar sozinho de novo. Sei que não é justo… Eu quero ser feliz… Pelo menos uma vez… Pelo menos hoje.
Léo sorriu:
— Você é imortal?
— Não acredito. Tenho memórias em que me vejo como uma criança. Estou envelhecendo e por isto acredito que um dia eu vá morrer.
— Mas em qual razão?
— Como razão?
— Desde quando você vive, quantos anos tem, cada ano físico seu vale para quantos anos reais. — disse Léo num súbito e inexplicável interesse.
— Dizem que aparento ter dezenove, talvez vinte anos. Se eu estiver certo e sempre existi, eu devo ter aproximadamente dois milhões e meio. Dois milhões e meio por vinte. Daria algo próximo a cento e vinte cinco mil anos a cada um ano físico meu.
Léo dá uma grande gargalhada:
— Você quer que eu acredite nisto, você está me chamando de idiota.
Léo caminhou rapidamente até a varanda:
— Então se jogue de cabeça daqui de cima.
— São quase quatro metros se considerarmos o parapeito.
— Que são quatro metros para um homem de doi…is milhões de anos?
— Vai doer.
— Ahaa, vai doer! Vem comigo!
Léo segurou Alex pelo ombro empurrou até o banheiro e mergulhou a cabeça do amigo na banheira ainda cheia do banho que ensaiou na noite anterior.
— Amigo Alex esta terapia será de graça, já a próxima irá custar. Se você tem dois milhões de anos seu tio é Deus.
Léo segurava a cabeça de Alex na água, as bolhas cessaram em vinte segundos.
— Que distúrbio é este? Será complexo de Matusalém, síndrome de macróbio. Para seu bem irei eu identificar esta psicopatia.
Um minuto passou sem que Léo percebesse.
— Você está bem? — perguntou Léo.
Alex levantou as mãos e fez um sinal de positivo com o dedo polegar.
— Você deve estar respirando. — disse Léo enquanto afundava mais a cabeça e o corpo de Alex.
Passaram três minutos, quatro minutos… a mão de Alex ainda sustentava o sinal de positivo.
Léo nunca conseguiria segurar a respiração por mais que quarenta segundos. E tentando equilibrar seus pensamentos, passado mais alguns minutos sentiu o corpo de Alex relaxar e desfalecer.
Imediatamente Léo retirou a cabeça do amigo da banheira e sentando-se no chão, perguntou assustado se ele estava bem. Nenhuma resposta, sem pulso, nem respiração. A cabeça se inclinava tocando o ombro.
Medo e culpa tomaram Léo, que parecia retornar ao pesadelo daquela manhã.
— Alex! — gritou, mas não tinha voz.
Na porta o velho se aproximou:
— Boa noite! — disse o ancião com tranquilidade.
— Quê? — indagou Léo com estranheza e desespero.
— A falta de oxigênio tira dele a consciência, mas ele não está morto. Deve ser uma sensação horrível sufocar até sucumbir. Esse autocontrole ele desenvolveu agora.
— Alex acorda! — grita Léo.
— Não adianta gritar, ele volta daqui a alguns minutos, como hoje de manhã. Pelo que me contou, quando ele acordou já estava seco, e você estava desmaiado. Você não deveria ficar tão desesperado. — o velho continuava a falar calmamente. — Coloque-o na cama… não que isto faça alguma diferença para ele, mas não gosto de vê-lo deitado no chão do banheiro… E que banheiro bagunçado hem!
De volta ao quarto.
— Preciso que cuide dele. Não viverei muito, Francisco ficará sozinho e sei que não posso confiar a tutela dele a meu filho. Eu ainda não contei isto a ele, mas estou tendo problemas com meus bens, tenho um filho que abandonei. Falsifiquei documentos para ter a guarda de Chico, mas descobriram. Francisco não existe legalmente, não posso assim passar parte dos meus bens para ele, estou tentando resolver tudo. Mas estou cansado. Peço que cuide dele. Pode soar de forma esquisita pedir para um adolescente cuidar de um imortal, mas Chico não precisa de sabedoria ou dinheiro, Chico precisa de amor. Se ele se sentir amado, valorizado, então se importará em cuidar de si mesmo. — o velho que mantinha o olhar preso a Alex, observou: — Ele voltou a respirar, agora vou seguir meu caminho. Por favor, te peço algo que não posso dar a Chico, peço que fique com ele de hoje em diante.
O velho saiu do quarto. Léo pode ouvir os seus passos descendo a escada, depois houve silêncio, quebrado três minutos depois:
— Agora acredita em mim? — perguntou Alex.
— Acredito. — sussurrou Léo — é impossível, mas digamos que por hora eu decidi acreditar para ver até onde isso vai.
— Compreende porque temo me aproximar de Maria? Sou imortal.
— Mas a Maria não!
O velho saiu da casa e caminhou lentamente até a rodoviária.