IV
Os eventos não mudaram, Léo continuou calmo, divertido e terno ao seu jeito. Não que ele tivesse aceitado. Tinha uma dúvida paranoica que Alex ocultasse bem mais coisas, e não estava de todo errado, visto conhecer Alex bem menos do que conhecia muitos de seus colegas da faculdade dos quais sempre se surpreendia com alguma revelação. Fato que não o assustava, sentia que Alex não era perigoso, pelo contrário, sentia que o amigo precisava de cuidados. Às vezes acordava no meio da madrugada com forte melancolia.
— É paranoia. — repetia para si mesmo, embora nem a razão nem os fatos lhe assistisse.
Queria voltar para casa, esquecer. Acreditar que aquilo seria muito para ele. Contudo, nestas horas lembrava do amigo e apesar de tudo, nunca poderia vê-lo como um senhor, independente, sóbrio. Era sim um adolescente confuso. Algo estava errado. “O que seria?”. Tarde, já na cama, tentava achar uma explicação, algo lógico.
Talvez Alex fosse uma criança com faculdades especiais, que aos cuidados de um ignorante levado por crendices, acabou por desenvolver uma psicose. Megalomania justificada por grandes habilidades. Cuidados médicos eram necessários, a pergunta é: “Como convencê-lo disso?”. Ele que se mantém sereno a tudo, ele que acredita mesmo nisso?
Discretamente os companheiros se observavam mutuamente. Alex se preocupava com a reação do amigo diante das revelações. Acreditava na lealdade do escolhido, esperava, porém, não decepcionar em fatos que pudessem ocorrer futuramente.
Léo comprou um pequeno bloco de apontamentos onde anotava tudo o que acontecia com o amigo. Suas alegrias ao ligar para Maria, e a tristeza que vinha depois pela tardança em sua declaração. As frases que sussurrava sozinho enquanto escrevia seu livro. Havia também uma página só para a descrição sobre o corte efetuado na coxa.
Anotações
Tímido, introvertido, humilde, tem um tutor que é sua de dinheiro, não se irrita, fica muito inquieto a menor dor. Não sente frio ou calor. Pode ver até aquela mosca sentada no para-raios da Igreja. Bateu o recorde mundial de mergulho, e morreu duas vezes nos últimos dias.
É VIRGEM com dois milhões e meio de anos. (Seria difícil acreditar na virgindade de um homem que tenha vinte). Também não se lembra de ter beijado ninguém…
Parece não ter nenhum contato com pessoas que conheceu antes de mim. O homem que ele chama de Tio voltou para onde veio, seja lá de onde veio, dizem uma fazenda em Catalão.
Afirmou com tom estranho, nunca se ter apaixonado. (Duvido! Ele esconde algo. Algo grande! Que o deixa inquieto ao tocar nesta palavra: “paixão”). Está apaixonado por Maria e não consegue dizer. Sofre por isto.
Ele a ama como ninguém amou, e eu falo por alguém que a conhece bem.
Ele a ama, do seu jeito, mas a ama, seja lá o que signifique isto.
A ferida sangrou muito assim que eu a fiz, subitamente interrompeu a hemorragia quando Maria chegou. O mais confuso é que não notei sangue no chão depois disso.
Era profunda dois dedos, um e meio. Sou bom com incisões. Ela não desapareceu naquele dia, como em um filme, na verdade, ainda está lá hoje, uma semana depois, é uma cicatriz, estranho apenas o fato que ela não esteja dolorida. Tenho convicção de que ela seja hoje apenas um sinal externo, e pela velocidade acredito que daqui a mais uma semana não exista.
Uma semana depois: o sinal é bem leve, mas ainda está lá. Como se fosse para eu me lembrar.
Fim da anotação
[A cada dia um novo ‘item’ era acrescentado.]
* * *
Nestes dias, Alex leu num jornal o edital sobre uma premiação para novos escritores. Decidiu participar, e dedicou a escrever um romance sobre um jovem imortal apaixonado e muito tímido. Sentia-se bem naquilo. Era a forma que encontrou de se esconder dos olhos do tempo, que parecia querer rapidamente destruir o mundo ao redor. Idealizar é preciso. Nisto passaram semanas. Maria nunca mais se preocupou em telefonar ou visitá-lo. Alex também não a procurou. Léo costumava contar no jantar algo que ocorreu no dia, incluindo sempre a garota. Alex parecia indiferente. Quando narrava algo ocorrido na faculdade ou no hospital, então se interessava, focava no diálogo em algum personagem, nunca em Maria. Fingia? Talvez sim, mas quem poderia julgá-lo?
Léo acreditou estar louco quando se viu conversando com o amigo sobre as vantagens e desvantagem de viver até o fim dos tempos.
— Ano três mil, quatro mil, e você estará com esta mesma cara. Mais alguns meses e dois mil, comemoraremos os quinhentos anos do Brasil. Você terá uma aparência de uns vinte quatro anos quando o Brasil fizer quinhentos mil anos… Será que a humanidade chega lá? Destruição das florestas, falta de alimento, ar de péssima qualidade. Estaremos no espaço. É isto!
— Não me preocupo com isto.
— Você nunca se preocupa com nada. Cara! — exclamou Léo assombrado — Daqui a mil anos, eu, Maria, meus filhos, meus netos, meus bisnetos, tataranetos e os netos dos netos deles estarão mortos, e você estará vivo. Será que você sentira saudades de mim, da Maria?
— Não me lembrarei de vocês, se não como um sonho, uma sensação rápida… Alegre, acredito.
Léo se sentiu pequeno, mas não comentou.
— Não importa o que você ache sobre sua memória. O que sei, é que, sem seu esquecimento, você ficaria louco.
— Posso esquecer da surra que levei, só que ainda sinto a dor. Compreende?
— Penso que posso compreender.
Alex caminhou para o quintal, lá estava muito frio. Léo consciente da insensibilidade do amigo, não questionou, correu ao quarto pegou uma blusa para si, e alcançou seu amigo já a beira da piscina.
— Pensando em nadar na noite mais fria dos últimos trinta anos? Foi o que noticiou o jornal. — comentou Léo.
— Quero ser feliz, irmão.
Léo arrastou duas cadeiras para onde Alex agachara, não disse nada, esperou que continuasse.
— Quero ser feliz. — repetiu — Hoje, mesmo que seja apenas uma vez. Talvez eu nunca me lembre, mas…
— Mas um dia você não lembrara do romance que viveu, mas lembrara da felicidade.
Alex sorriu:
— Juro que serei leal a ela enquanto a tiver na memória, e queira Deus que eu não a esqueça.
— Não importa quanto tempo um homem viva, a vida sempre é pequena. — filosofou Léo — Agora não pense nisto… Não leve as coisas assim, você é de um modo ou outro é jovem tem uma vida aí, não vá se entregando ao primeiro amor, aproveite ele, observe o que vocês aprendem.
— É?
— Claro que é! Você está apaixonado, não é o fim dos tempos, a Terra não está em risco. Leve na brincadeira… Você não vai se arrepender.
— Eu a amo! — exclama Alex.
— Eu sei.
— Como nun… — hesitou Alex como se buscasse suporte para sua afirmação — Como nunca!
— Você não se lembra, não é?
— Não lembro. — disse Alex enquanto puxava uma cadeira para junto do amigo — Não me lembro de ter me apaixonado, mas não sinto como se esta fosse uma sensação nova. Você é uma sensação nova.
— Credo! Não fale isto perto de ninguém!
— Sei quando uma sensação é nova. Vou à Goiânia comprar algo pra Maria, não se preocupe será algo barato.
— Isto aí. O que você fez na década de setenta?
— Por quê?
— Eu sempre perguntei isto pro meu pai, deu vontade de perguntar pra você?
— Deixa pra outro dia, estou querendo mergulhar.
— A água está gelada! Você vai te congelar.
— Acredito que suporto. — disse Alex em tom esnobe, enquanto caminhava e saltava.
Léo ficou preocupado só de imaginar o quanto a água devia estava fria.
— Eu vou… — titubeou Léo — Eu vou…
Léo também mergulhou.